tudo é dissimulado











Recentemente o jornal The Guardian publicou uma pequena enquete com artistas contemporâneos: “Qual é a questão principal que os artistas encaram hoje?”
A maioria das respostas se referiam à estrutura política do sistema de arte contemporânea (um espaço ainda gregário, racista, machista, elitista, dentre outras tretas) e muitas vezes tocavam diretamente até mesmo a algo tão chão quanto à sobrevivência econômica do artista.
Achei interessante que pontos onde se problematizavam a linguagem ou a “forma” artística não exatamente apareciam em segundo plano, porém estavam atrelados ao que justamente aparecia quanto àquilo que não seria indispensável tocar ou mesmo discutir, pois é dado como o básico, como o essencial, óbvio, aquilo sobre o qual seria onde se dava a “mágica expressiva”.
No meio das respostas apareceu sugerida uma pergunta como: Que tipo de artista quero ser? Parecia uma pergunta errada, redundante. Como se todos estivessem partilhando os mesmos ensejos e dificuldades. Penso isso quando nos deparamos com reflexões mais básicas. Não quando apenas nos perguntarmos, por exemplo: o que é pintura? Mas, é possível apenas pintá-las?
Pergunta aparentemente pueril. Mas que penso importante dentro das quase protocolares responsabilidades que forçosamente estão nas narrativas da produção contemporânea. Dessas responsabilidades está a necessidade não apenas de uma forma, mas de uma espécie de tema e de preferência que este possa, sem se evanescer ou distorcer, se adequar a outras proposições curatoriais ou distintas circunstâncias institucionais.
Quando conheci o trabalho do David Magila achei primeiro corajoso: aquilo era uma pintura contraditoriamente despretensiosa, porém complexa. Podia estar também sob influência de afinidades outras que não as artísticas... via um artista desafetado e objetivo...
Eu mantinha uma atitude onde geralmente a pintura era aquilo que visitamos eventualmente desarmados, algo que não problematizamos mais, se tornando um fetiche simples diante o qual nos sentirmos confortáveis, onde de certa forma alguém está corroborando que existe um exercício de uma espécie de manufatura elegante daquilo que chamamos ou pensamos imagens.
Claro que com mais encontros com seus trabalhos (especialmente as pinturas) e também conhecendo melhor o “personagem” mesmo (que parece não ter deixado de lado uma simplicidade meio caiçara que acabou adotando)... ia ficando mais claro que aquela despretensão era ardilosa.  Não penso que apenas pela complexidade de sua feitura, dos procedimentos “gráficos”, repetições, sobreposições, do próprio exercício de dissolução e dissimulação (onde muitas vezes é difícil decompor e recompor os elementos ali encontrados de forma que até mesmo desistimos e partirmos pra um olhar menos ansioso e até mesmo “contemplativo”).
Essa seria uma primeira ambivalência que encontrei em seu trabalho.
Daí esbarramos com algo que as torna ainda mais instigantes (detesto esses termos, mas...): que é o diálogo com a  arquitetura, mais especificamente com a representação da arquitetura.
 E com algo que acaba um tanto excêntrico que é uma imprecisão no uso das ferramentas para a representação mesma da arquitetura: o desenho, perspectiva, ortogonalidade, etc. Aquilo da arquitetura que pode ser onde não a vivemos, porém é de qualquer maneira dispositivo pra tal função... Os aparatos para construção, descrição, circunscrição... David tem até mesmo uma origem (pelo menos aparenta ter) onde foi importante certo domínio técnico, no caso o desenho. Mas isso de repente deixa de ser relevante.
A ambiguidade está, além disso, no que o aproxima do artista britânico Hurvin Anderson (com quem dialoga aqui nesta exposição): ambos partem também de uma deriva na cidade e de um olhar que até mesmo força particularizações e apropriações difusas criando uma espécie de “maneira” de traduzir suas experiências que não se exaurem em retratar esses espaços usando as ferramentas de representação da arquitetura, mas algo que bem pode ser descrito como uma análise da melancolia não apenas daquilo que é encontrado ou escolhido, mas como este estudo relativamente nostálgico pode ressimbolizar esses lugares.
Digo isso pela repetição de ambientes e determinados elementos no caso de David. Mesmo que um pouco redutor é inevitável apontá-los como sendo vulgares ou banais. Em detrimento a uma escolha de dar ênfase ao ordinário de forma a contaminá-lo por uma certa melancolia “solene”,  é interessante que são mesmo mergulhados num ambiente estranhamente vivo e pulsante e mesmo assim nos trazem essa sensação de abandono e solidão.
Solidão talvez até pela ausência de “pessoas”, o que alimenta uma outra leitura a partir de uma estranha escala em seus trabalhos, onde os objetos estão embaralhados com seus ambientes. Como se estivessem se escondendo entre si, numa histérica indeterminação entre figura e fundo.
Pensei nessa confusão também em relação às cores. Além do jogo onde os objetos e seus ambientes se confundem, como se o artista quisesse que não fossem evidentes quais mesmos seriam ou o quê poderiam dizer esses espaços representados e o quê simbolizariam. Há um outro jogo que é: o que o artista está escondendo utilizando de tais ambiguidades?
Por exemplo: Eu também prefiro me esconder dentro de bares amados de uma arquitetura específica vulgar, porém sofisticada em seu anacronismo. Apesar de sujos de vida em seu sorriso dolorido e ao mesmo tempo pintados duma cor velha encardida.
E se eu pudesse viveria dentro desses ambientes que nem querem mais ter cores... desistiram... eu mesmo desisti de ter outras cores que não essas desses bares que não querem novos clientes novos, mas que também não querem morrer sozinhos.
Há muito de uma nostalgia espontânea em uma casa com cheiro de abandono (cheiro bem específico por sinal). Uma geladeira desligada mofada perdida num canto, sofás onde nem rato quer morar, e cadeiras de plástico sujas esperando...  mato crescendo pelos vincos e rachaduras...  telhas velhas de amianto, o peso de um forro que quando olhamos pra cima nem conseguimos mais ter dó que desabe...
David sugere ter tal interesse e afeição por esses lugares do modo que expus, mas... algo que eu jamais esperaria seria vê-los explodidos de cores que parecem descontroladas e aleatórias. Como um ardil para confusão, para outra temporalidade de leitura, em que: ou o artista não aceita que seja revelada uma intenção ou que não se importasse mesmo com isso (como se fosse possível apenas pintar!).
Acabam contraditórios em serem trabalhos íntimos, e ao mesmo tempo distantes... desde que desistidos de uma paleta com cores necessárias pra que se tornassem mais acolhedores contraposto ao uso de algo que os torna remotos demais, quase incompreensíveis... como se houvesse um erro na forma de sedução. As pinturas têm mesmo como título “Frequentes Conclusões Falsas”.
Quase complementares fechando os “interesses poéticos” do artista temos recortes de registros em vídeo de uma cidade beira-mar invadida pelo mar, e que bem pode e deve ser uma cidade qualquer. Quando dito “interesses poéticos” pois é frequente em seus trabalhos elementos “litorâneos”. Mais uma vez remetem não à imagem clássica de alguma maneira das “belezas” ou “mistérios” do mar, ou dos encantos e glamour de tais cidades... mas o uso mesmo daquilo que é idiossincrático nas cidades litorâneas “banais”: mais Praia Grande do que Elafosini na Grécia.
Novamente temos uma inusitada melancolia... mesmo sendo ruínas (algo que historicamente fascina artistas...), são escombros “pobres” obviamente desprovidos de charme... o que acaba num funcionamento conjunto para uma melhor tentativa de apreensão inclusive de componentes das pinturas. A instalação no chão do espaço é um acumulo de destroços retirados desse mesmo lugar registrado nos vídeos. Assim podemos ter acesso também, remontando/reconstituíndo esses pedaços  à simplicidade do material e assim, a frugalidade e humildade do lugar de onde foram tirados...
Colocados assim parece que são trabalhos que buscam uma completude a partir de pontos compartilhados. Mas mesmo assim penso esta operação redutora que paralisa seu movimento em fuga. Há sim encontros entre as pinturas, desenhos, o vídeo e a instalação tão claros que podem fazê-los complementares inclusos ou partes em um mesmo discurso.
Me se criar é manipular e dar novos sentidos... talvez seria necessário procuramos também pelo que ali está ausente. Pelo que não é confessado pelo artista ou simplesmente exposto numa práxis (no caso, na ação em detrimento “a conceituação”) artística, mas no que é falseado e retardado em nossa presença e desejo de compreensão e domínio.
Pensando no título da exposição “Tudo é dissimulado” e também na possibilidade do “apenas pintar?”... nos limitarmos a conveniência do encontro de constantes que possam nos orientar por um caminho de leitura ou a “evidência” de um possível tema é irresistível, porém injusto ou mesmo ingênuo.
Esse beco sem saída talvez seja uma das principais questões que os artistas sempre encararam... E que acho se tornou ainda mais complexa hoje.





Texto para exposição"Tudo é Simulado" de David Magila no 21 Festival Cultura Inglesa. 2019.