confusão, intolerância e outras coisas...







Feedback, de Roberto Winter, foi publicado no caderno Sesc Videobrasil 06. Me batendo com o texto, percebia que era impossível não tentar compreendê-lo e projetá-lo à luz das dores de cabeça epistemológicas e políticas do campo da arte. Penso que o mais interessante do texto, ou dos textos, de Winter é a forma como eles nos obrigam a exercícios de compreensão que de fato não se esgotam em sua simples leitura.
É composto por três textos intercalados em blocos, três blocos por página em sucessão. O autor cria contrapontos a partir desses textos que a princípio parecem não se relacionar. Só um deles toca no assunto arte, mais precisamente crítica de arte. Penso que talvez ali esteja a chave de todo o trabalho, mesmo sabendo que esse negócio de descobrir chaves para o pensamento alheio na maior parte das vezes é um crime. Winter descreve três modos despolitizantes de interação da crítica com a arte, chega mesmo a projetar esses modos nas interações dos sujeitos entre si e com o mundo: ignorar, polemizar e tolerar, todos é claro quando de forma acrítica.
Outro texto é sobre genômica, a princípio mais complexo dentro do jogo proposto (escrever que é um jogo, uma liberdade que tomo). Este trata das generalizações nas difusões populares de ciência, que omitem suas reais complexidades. Mas ao meu ver talvez trate também dos perigos das relações entre relativismo e essencialismo. Se não me engano, até mesmo Richard Rorty apontou os perigos do relativismo sem uma preocupação profunda com as nuanças dentro de uma visão holística. Acreditar que o mapeamento do DNA dos seres vivos pode realmente tornar possível reconstruir um organismo complexo é extremamente redutor, mas vendeu muita notícia, algo como a política na última bienal de São Paulo.
Winter é muito inteligente nas suas escolhas. Sua colaboração no caderno é provocativa, ao menos provocou alguns surtos na minha pobre cabeça, por esse motivo corro o risco de estar completamente equivocado nas minhas colocações. Em alguns momentos os três textos tratam dos vícios generalizadores, acríticos, eufemizadores ou simplificadores que muitos pensam ser necessários para a determinação ou a difusão do conhecimento. Vícios que podem até ser encontrados em certas heranças de um pseudoacademicismo travestido de rigor, ou pior, imparcialidade. Temos essa mesma postura quando tratamos de arte. A crítica de arte muitas vezes esquece o caráter negativo de seu objeto, que não tem mesmo liames e não deve ser sempre apaziguado em sua complexidade. Penso que devemos ser parciais, malas e impacientes, artistas precisam de chicote crítico.
Gostaria de tentar dialogar um pouco com o texto de Winter, mesmo que de forma menos sagaz. Mas, afinal, o que me animou foi a possibilidade de poder escrever sobre coisas que não conheço tão bem.
Um outro texto de Winter trata de Ludwig Wittgenstein e gostaria de começar minha conversa comFeedback justamente com ele. Em 1914, Wittgenstein pediu ao editor da revista  Der Brenner,Ludwig von Ficker, para que distribuísse cem mil coroas (dizem que era uma fortuna na época) para poetas e outros artistas que estivessem mal das pernas. Alguns beneficiários foram Rainer Maria Rilke, Georg Trakl, Oskar Kokoschka, Adolf Loos, e outros. O filósofo pediu para que ficasse anônimo e não parecia ter uma preocupação específica com a produção dos agraciados.
O filósofo afirmou muitas vezes não compreender poesia, disse por exemplo que admirava muito Trakl, apesar de não entender nada do que este escrevia. Contraditoriamente, encontramos, em um de seus milhares de aforismos, que a filosofia deveria ser escrita como uma composição poética, mas termina afirmando que isso apenas revelava que não podia fazer o que gostaria de fazer. Que admitir isso era algo frustrante. Para Wittgenstein, a poesia era uma forma não imiscuída às discussões sobre a impossibilidade da linguagem como ferramenta para descrever o mundo. A arte poderia evidenciar um conflito, desespero ou ascese metafísicos, mas não era algo analisável, era coisa de gênio. Devemos lembrar que em seu Tractadus Logico-Philosophicus, mostra que o significado de uma expressão é determinado pelo seu uso e que expressões inúteis não têm significado. Inútil, no caso, significaria algo eliminável pela análise. Assim, talvez fosse a arte a menos má das desnecessidades ou das inutilidades.
É bizarra a angústia de Wittgenstein em relação a Shakespeare. Na coletânea Cultura e Valor, diversas vezes aponta que o poeta, tanto como o filósofo, apenas se articula dentro de leis próprias, levando em consideração que para ele o objetivo da filosofia era a clarificação dos pensamentos com vista a dissolver os problemas filosóficos. Porém o poeta talvez tivesse alguma missão transcendental, algo que deveria ser interdito aos filósofos: “As comparações de Shakespeare são, no sentido vulgar, más. Mas se, apesar de tudo, são boas – e não sei se o são ou não, devem ser uma lei para si próprias. Talvez a sua sonoridade, por exemplo, lhes confira plausibilidade e verdade”, “Eu só conseguiria admirar Shakespeare; nunca fazer algo com ele”. Como se algo o obrigasse a respeitar o poeta inglês, mesmo que pelos motivos errados.
Anacronismos à parte, grande parte da crítica sofre ainda da mesma indulgência quando retrata a arte, mesmo quando travestida de rigor acadêmico. Esse rigor muitas vezes é apenas a rearticulação de uma mesma tese acadêmica de seu autor às mais diferentes produções, ou o estabelecimento de trabalhos permeando-os com referências históricas. Promete uma inserção na história ou na teoria, mas que acaba apenas apagando o trabalho em sua singularidade. Há algum tempo a arte brasileira passa por um processo de academização. Mesmo aqueles que não saíram da universidade, estão se voltando pra ela. O problema é que uma boa parte do pensar arte depende de uma teoria da arte ou uma história da arte, apaga-se o que há de negativo, de complexo, e cai-se no que Wittgenstein chamava de ânsia pela generalidade.
Hoje não temos mais o gênio para justificarmos os investimentos. É claro que no Brasil temos o fantasma de Hélio Oiticica, que é pau para toda obra, o que me obriga a pensar então em outra desculpa para a arte. Um produto sem valor de uso, sem critérios tangíveis de avaliação, nada popular e além de tudo muito passível de obsolescência histórica… Especialmente no Brasil…
Outro dos pontos críticos à arte contemporânea também é seu tão apregoado élaninterdisciplinar. Ou melhor, seu salvo-conduto nos mais diversos campos de ideias. Mesmo que timidamente, é cada vez mais necessária alguma observação epistemológica. Ao mesmo tempo em que se tolera posições relativistas e mesmo irracionais quando se trata de arte, essa tolerância se transforma quando se trata da arte crítica ou da crítica de arte – uma imensa suspeita paira sobre essa produção.
Pensemos alguns exemplos sobre a tão hipostasiada relação entre arte e política. Jacques Rancière em O Espectador Emancipado, no capítulo Os paradoxos da arte política, não consegue determinar historicamente a que política a arte se refere quando se refere à política. E pergunta: a quais modelos de eficácia obedecem nossas expectativas e julgamentos em matéria de política da arte?; Em uma série de palestras no Centre Goerges Pompidou, chamada Que Faire? Art/Film/Politique, o artista libanês Rabih Mroué, após descrever um conjunto de performances onde simulava os últimos depoimentos filmados de homens-bomba no Oriente Médio, teve que ouvir as seguintes questões do artista e teórico Rasheed Araeen, editor da revista Third Text: se seu trabalho é artístico, o que o senhor criou? E se é político, o que o senhor conseguiu?; Um último exemplo esclarecedor é a introdução do catalogo da 29ª Bienal de São Paulo. Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos, quando declaram uma impossibilidade de separar arte e política, explicando uma bienal que tratava de arte e política, utilizam de uma nota mágica e lenitiva: “para a relação entre arte e política na perspectiva aqui defendida, ver Jacques Rancière “Politics of Aesthetics”” – simples assim: qualquer problema perguntem pro Rancière.
A questão é: viver este limbo é confortável? Se a análise apenas torna explícito o que esta implícito no discurso, como é possível a análise de um pseudodiscurso? Essa frase é falsa. Essas perguntas têm como base os tantos harakiris epistemológicos cometidos por artistas e seus outros satélites, quando colocados contra a parede. Se as relações entre arte e epistemologia são problemáticas; se a arte não pode ser tomada como campo de conhecimento; se não produz conhecimento; o que se deve esperar de quem analisa a arte, de quem a media, de quem a representa e principalmente de quem a esta se contrapõe?
Que a arte não crie proposições analisáveis, nem sequer falsas ou verdadeiras; se em sua defesa e impugnação, tem-se como fato que suas crenças verdadeiras não têm justificação, mesmo assim suas proposições existem. Devemos então reificar a teoria institucional da arte? Que a arte é aquilo que ela é. Que é aquilo que os agentes do campo da arte podem admitir ser. Não penso que todos esses jogos tautológicos sejam saudáveis também. Lembrando que a maioria desses jogos surgiram com a arte conceitual e que esta muito flertou com um estruturalismo imobilizador que de tanto pensar tudo, nada mais pensava. Ou ainda que para não ser obrigada a realmente pensar, pensava tudo.
A arte é um campo, um microcosmo definível pelo espaço social. Tem suas regras, seus jogos, suas lutas entres seus agentes, sofre da distribuição desigual de capital, que pode definir as relações de força históricas dentro do campo, assim reestruturando as posições de seus agentes e, finalmente, o que penso ser o mais importante, como resume o sociólogo Bernard Lahire analisando Pierre Bourdieu: que mesmo em luta uns contra os outros, os agentes de um campo têm pelo menos interesse em que o campo exista, portanto, mantêm uma cumplicidade objetiva para além das lutas que os opõem. Será que partindo da análise dos agentes do campo da arte pode haver alguma possibilidade de realmente podermos pensar arte e política?
Ou seja, pode ser que o único analisável e problematizável do campo da arte seja aquilo que não é a arte? E é justamente esse o ponto mais delicado, mais político, mais perigoso e consequentemente menos interessante para quem quer realmente continuar publicando nos coloridos catálogos institucionais. E se pensarmos ainda em como a crítica é indulgente com os artistas, e imagino que artistas não sejam arte. Já vi artistas corrigindo textos de críticos sobre seus trabalhos, pois não os acharam “satisfatórios”, mesmo em instituições públicas.
Infelizmente para alguns paranóicos da academia, penso que são os artistas (e seus satélites) que redefinem a arte e não o contrário, mas ao mesmo tempo os artistas são passíveis do habitus do campo da arte. Utilizando do sociologuês sem qualquer autoridade: habitus é um termo de Pierre Bourdieu que sintetiza disposições sociais incorporadas, os hábitos, as inclinações, os pendores contraídos no decorrer de experiências sociais repetidas. Contraditório. Mas é o peso entre as duas condições descritas em determinada época que vai determinar o quanto de hibridismo haverá na produção.
Me lembro mesmo do professor Vladimir Safatle pensar em uma possibilidade de reavermos critérios mais estanques para julgarmos a produção artística. Assim salvando a arte e principalmente aqueles que são obrigados a pensar e escrever sobre ela. O problema é que isso me cheira a saudades de um certo formalismo, de modelos construtivos simples de pensamento, de possibilidades de projeção, de alienação, etc.
O problema do anacronismo da possibilidade de reavermos constantes que permeiam a produção artística, de forma a criarmos critérios para sua análise, é que jamais deixariam de ser apenas paliativos críticos. Pois penso que já temos incrustada, mesmo involuntariamente, a suspeita de sistemas fechados e grandes verdades, já somos todos relativistas. Além disso, como impingir algo assim? É claro que é difícil! E pensando então numa tradição de crítica epistemológica de Karl Popper, Thomas Kuhn, Michel Foucault ou Paul Feyerabend, este que não desprezava nem mesmo a ideia de que poderiam ser medidas profiláticas ao câncer, tanto a estricnina, balinhas haribo, penicilina ou encher o rabo de 51… E estavam colocando em xeque proposições científicas enquanto verdades. Olhe que ainda assim morremos de medo da ciência, pois pode não nos curar numa próxima gripe do pepino, ou pode nos mandar pro espaço.
Mas quem tem medo de arte contemporânea? Pouco nos importa que a arte trate realmente de política, este é um tema para metafísicos. O relevante para nós é que tudo ocorra como se ela tratasse e que essa hipótese se mostre cômoda para a explicação dos fenômenos. O problema é assumir a complexidade desta posição e de forma nenhuma nos acomodar com esta, que pode ser sim uma situação confortável.
A arte contemporânea se tornou um campo privilegiado, talvez por essencialmente não poder justificar a verdade em suas crenças (esta é uma licença poética também). Onde se produz muito, mas sob a ausência de julgamento, parafraseando um título do crítico James Elkins, citado no texto de Winter: On the absence of judgment in art criticism.
Roberto Winter lembra também da posição de Slavoj Zizek quanto à tolerância. O problema é que a tolerância se confunde com o exercício da indiferença. Da mesma forma na arte e na política, deveríamos exercitar a intolerância sempre que possível, principalmente diante de todas as aporias que encontramos nos dois campos. A ausência de critérios para julgamento deve ser algo estimulante, pensando no Brasil, onde acho que a arte contemporânea ainda é um corpo estranho, por mais que nossa recente histeria econômica tente nos projetar em uma outra realidade. Temos que tomar cuidado com a tolerância do dissenso de boutique, ou ainda de um carnaval democrático que, como escreveu Rancière, simplesmente proclame l’égalité de tous les sujets (a igualdade de todos sujeitos/assuntos).
Lembro-me também de uma crítica de Zizek ao conceito de desconstrução de Derrida, que para ele é apenas um eufemismo para o conceito de destruição em Heidegger. Críticos adoram desconstruir, talvez seja importante, mesmo que pueril, algum exercício de destruição. É engraçado lembrar que Heidegger conheceu e concordou com o uso de seu conceito por Derrida. Ou seja, Zizek inventou essa crítica sem nenhuma base, mas mesmo assim, ela não deixa de ser interessante: que não seja necessária apenas a desconstrução ontológica e logocêntrica (Nicolas Bourriaud, i.e. coisa horrível), mas sua destruição mesmo. Sem exageros, simplificar ou trabalhar com generalizações em um ambiente problemático como a arte é possível, mas não vejo nada mais sadio do que um texto que seja intolerante com seu ambiente, assunto e principalmente com o leitor. Como penso ser o de Roberto Winter.
Termino com uma pequena citação de Ludwig Wittgenstein:
“Para resolver estes problemas filosóficos, deve-se comparar coisas que nunca ocorreram a ninguém seriamente comparar.
Nesse campo pode-se perguntar toda sorte de coisas que, embora pertençam ao tópico, ainda não levam ao seu centro.
Uma particular série de perguntas leva ao centro e para fora. As restantes acabam sendo respondidas incidentalmente.
É enormemente difícil encontrar o caminho até o centro.
Ele avança via novos exemplos e comparações. Os banais não os mostram.”[1]

[1] WITTGENSTEIN, Ludwig. Observações Sobre os Fundamentos da Matemática (1956).

Publicado na Revista Tatui edição 12.




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